terça-feira, 13 de março de 2012

"Dombolo Zangado" o camião da coluna do Huambo



Viajávamos em direcção à província do Huambo com uma caravana de mais de 200 camiões, com escolta militar. Naquele tempo, no ano de 2000, por razões de segurança, uma viagem dessas chegava a durar um mês inteiro. Uma verdadeira eternidade. Era tempo suficiente para se procurarem motivos de distracção e de conversa fiada entre o pessoal. Contavam-se episódios ridículos nos quais não faltavam pitadas grosseiras, típicas da conversa dos camionistas quando estão na estrada.

A dado momento, alguém descobriu que existia na coluna um camião que não era igual aos demais. Era uma máquina especial. Numa das inúmeras paragens não aguentámos a curiosidade, lá fomos confirmar a veracidade da notícia que, entretanto, já se tinha espalhado de boca em boca e ouvido em ouvido. De facto, lá estava ele, o camião especial. Tinha uma placa pendurada no para-choques da frente que atestava a sua identidade:
Dombolo Zangado”. Todos queriam vê-lo de perto.

Foi assim que o
Dombolo Zangadose tornou na mascote da nossa caravana que seguia de Benguela para o Huambo num dia qualquer do ano de 2000. Na verdade era um camião, mas parecia um alface gigante com enormes rodas. O nome, em si, já era curioso, contudo, era o seu vulto estrambólico que despertava a curiosidade. Íamos nos interrogando dos motivos que teriam levado o proprietário a tingi-lo com um verde tão berrante, desesperadamente insuportável com o brilho do sol do meio-dia.

Afinal, o
Dombolo Zangadotinha uma estória interessante para contar. Tratava-se de um camião de marca CRAZZ”, do tempo dos soviéticos, um esqueleto monstruoso ressuscitado a martelo e escopro por um reservista do antigo exército, as FAPLA.

Vê-lo a arrancar era um espectáculo imperdível. Engrenava a caixa de velocidades com o rosnar dos gatos-bravos e o motor arfava ofegante como um destreinado corredor de maratona. Durante a marcha, enquanto os restantes camiões suportavam a dureza das subidas sem queixumes, o
Dombolo”, coitado, rolava aos soluços. Ameaçava desintegrar-se à qualquer momento.

Quanto ao condutor, este era um sujeito curiosíssimo. Parecia ter sido escolhido a dedo para tripular semelhante veículo. A criatura dava ares de sobrevivente de algum cataclisma ocorrido noutra galáxia. Tinha dentes desordenadamente escancarados, num semblante estacionado no cruzamento entre a alegria e o sofrimento.

Não tardou, o
Dombolo Zangadopassou a sofrer o escárnio do pessoal. Os mais maldosos espalhavam boatos do iminente colapso do camião. A dado momento, era crença generalizada que ele não aguentaria a viagem até ao Huambo. Havia apostas feitas por cima das capotas dos carros enquanto se bebericava um copo de café. Tinha até os mais pessimistas que prognosticavam um “KO” técnico logo ao primeiro assalto.

No declive de oito por cento da pedreira do
Ucheo ajudante de um camião-plataforma de marca “Volvo” que ia no encalço do Dombolo”, jurou a mãos juntas ter visto uma nuvem agoirenta de vapor branco escapulir-se do inferno do radiador, como se estivesse já a acontecer a anunciada fatalidade. No entanto, para espanto de todos, o paquiderme resistiria à subida doUchee às outras mais que lhe seguiram. Dava até a impressão que festejava cada façanha com um abananço das enormes rodas dianteiras calcando os pedregulhos espalhados abundantemente pela estrada.

Logo nos demos conta que o
Dombolo Zangadoafinal não era um camião qualquer. Ficou claro que o Dombolo não valia pelo ridículo da sua figura de camaleão trôpego perdido no meio de esbeltas e velozes gazelas. O seu mérito era outro. Ao longo dos primeiros 400 quilómetros da nossa viagem para o Huambo pela estrada da Cacula, o velho camião soviético daria provas de insuperável resistência. Era notável o seu apetite para devorar as inúmeras crateras deixadas pelo deflagrar de minas. Isso sem falar da sua extraordinária capacidade de equilibrar-se em pontecos feitos com troncos de eucaliptos, como se fosse um verdadeiro artista de circo. Digamos que, no fundo, o nosso artista nem precisava de fazer soar a buzina. Em movimento, a sua descomunal massa de ferro ouvia-se tilintar ao longe, como uma velha charanga desafinada.

O
CRAZZ era na verdade um monumento à estoicidade dos camionistas que ao longo daqueles anos difíceis da vida de Angola arriscavam as suas vidas, circulando pelas estradas martirizadas pelas emboscadas, na luta para que o país jamais ficasse paralisado e a comida chegasse aos locais mais distantes do interior.

O Dombolo Zangadotinha, sim, um aspecto atabalhoado, isso não era possível negar. Mas esse pormenor não era suficiente para ofuscar o indelével sopro de dignidade que irradiava dentro de si. Uma firmeza que enchia de orgulho os que integravam a coluna do Huambo. Em sua homenagem publico esta crónica. Para que conste!
in Jornal de Angola de 13.03.2012, Jaime Azulay

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